27 de janeiro de 2012

48.

A suposta existência.

Andrade, Carlos Drummond de.

Como é o lugar quando ninguém passa por ele? Existem as coisas sem ser vistas?
O interior do apartamento desabitado, a pinça esquecida na gaveta, os eucaliptos à noite no caminho três vezes deserto, a formiga sob a terra no domingo, os mortos, um minuto depois de sepultados, nós, sozinhos no quarto sem espelho?
Que fazem, que são as coisas não testadas como coisas, minerais não descobertos - e algum dia o serão? Estrela não pensada, palavra rascunhada no papel que nunca ninguém leu? Existe, existe o mundo apenas pelo olhar que o cria e lhe confere espacialidade? Concretitude das coisas: falácia de olho enganador, ouvido falso, mão que brinca de pegar o não e pegando-o concede-lhe a ilusão de forma e, ilusão maior, a de sentido?
Eis se delineia espantosa batalha entre o ser inventado e o mundo inventor. Sou ficção rebelada contra a mente universal e tento construir-me de novo a cada instante, a cada cólica, na faina de traçar meu início só meu e distender um arco de vontade para cobrir todo o depósito de circunstantes coisas soberanas.
A guerra sem mercê, indefinida prossegue, feita de negação, armas de dúvida, táticas a se voltarem contra mim, teima interrogante de saber se existe o inimigo, se existimos ou somos todos uma hipótese de luta ao sol do dia curto em que lutamos.

2 comentários:

  1. Lindo blog. Drummond sempre sábio e sempre útil a nós inquietos. "Sou ficção rebelada contra a mente universal e tento construir-me de novo a cada instante." Lindo!

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    1. Obrigada, Jorge. Eu gosto muito desse texto porque principalmente no começo eu consigo ir imagino as cenas de tudo que ele fala e isso dá uma beleza maior ainda a ele. Fico feliz que tenha gostado do blog. Espero que volte mais vezes.

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