27 de janeiro de 2012

48.

A suposta existência.

Andrade, Carlos Drummond de.

Como é o lugar quando ninguém passa por ele? Existem as coisas sem ser vistas?
O interior do apartamento desabitado, a pinça esquecida na gaveta, os eucaliptos à noite no caminho três vezes deserto, a formiga sob a terra no domingo, os mortos, um minuto depois de sepultados, nós, sozinhos no quarto sem espelho?
Que fazem, que são as coisas não testadas como coisas, minerais não descobertos - e algum dia o serão? Estrela não pensada, palavra rascunhada no papel que nunca ninguém leu? Existe, existe o mundo apenas pelo olhar que o cria e lhe confere espacialidade? Concretitude das coisas: falácia de olho enganador, ouvido falso, mão que brinca de pegar o não e pegando-o concede-lhe a ilusão de forma e, ilusão maior, a de sentido?
Eis se delineia espantosa batalha entre o ser inventado e o mundo inventor. Sou ficção rebelada contra a mente universal e tento construir-me de novo a cada instante, a cada cólica, na faina de traçar meu início só meu e distender um arco de vontade para cobrir todo o depósito de circunstantes coisas soberanas.
A guerra sem mercê, indefinida prossegue, feita de negação, armas de dúvida, táticas a se voltarem contra mim, teima interrogante de saber se existe o inimigo, se existimos ou somos todos uma hipótese de luta ao sol do dia curto em que lutamos.

21 de janeiro de 2012

47.


Nós podemos explicar o azul-pálido desse pequeno mundo que conhecemos muito bem. Se um cientista alienígena, recém-chegado às imediações de nosso Sistema Solar, poderia fidedignamente inferir oceanos, nuvens e uma atmosfera espessa, já não é tão certo. Netuno, por exemplo, é azul, mas por razões inteiramente diferentes. Desse ponto distante de observação, a Terra talvez não apresentasse nenhum interesse especial. Para nós, no entanto, ela é diferente. Olhem de novo para o ponto. É ali. É a nossa casa. Somos nós. Nesse ponto, todos aqueles que amamos, que conhecemos, de quem já ouvimos falar, todos os seres humanos que já existiram, vivem ou viveram as suas vidas. Toda a nossa mistura de alegria e sofrimento, todas as inúmeras religiões, ideologias e doutrinas econômicas, todos os caçadores e saqueadores, heróis e covardes, criadores e destruidores de civilizações, reis e camponeses, jovens casais apaixonados, pais e mães, todas as crianças, todos os inventores e exploradores, professores de moral, políticos corruptos, superastros , líderes supremos , todos os santos e pecadores da história de nossa espécie, ali - num grão de poeira suspenso num raio de sol. A Terra é um palco muito pequeno em uma imensa arena cósmica. Pensem nos rios de sangue derramados por todos os generais e imperadores para que, na glória do triunfo, pudessem ser os senhores momentâneos de uma fração desse ponto. Pensem nas crueldades infinitas cometidas pelos habitantes de um canto desse pixel contra os habitantes mal distinguíveis de algum outro canto, em seus freqüentes conflitos, em sua ânsia de recíproca destruição, em seus ódios ardentes. Nossas atitudes, nossa pretensa importância de que temos uma posição privilegiada no Universo, tudo isso é posto em dúvida por esse ponto de luz pálida. O nosso planeta é um pontinho solitário na grande escuridão cósmica circundante. Em nossa obscuridade, no meio de toda essa imensidão, não há nenhum indício de que, de algum outro mundo, virá socorro que nos salve de nós mesmos.
Carl Sagan.

46.

NATAL

Fechou com cautela a porta disforme de madeira que mal trazia segurança ao casebre. Fitando o nada entre si e o chão aos seus pés, com as mãos no bolso do short sujo e velho, começou a caminhar sob o céu estrelado daquela noite de natal.
Fazia frio e suas roupas não o ajudavam a vencê-lo, mas suportava com pesar. O garoto tinha sete anos de idade, roupas gastas e sandálias maiores que os pés.
Há tempos havia ouvido falar que as crianças ricas ganhavam ótimos brinquedos de natal, então decidiu passar a noite no bairro mais rico que conhecia, esperando que o Papai Noel aparecesse, pois planejava saber o porquê dos garotos da sua vila não receberem presentes.
Pelo caminho pensava alto e conversava consigo mesmo: Se o Papai Noel não puder mandar presentes para os garotos da minha vila vou pedir ao menos um para o meu irmão Caio, ele quer muito uma bola de futebol de verdade. Preciso explicar ao Papai Noel que não é nossa culpa não termos biscoitos e leite, nem chaminé! Ele vai entender...

Chegou ao seu destino: uma rua com casas grandes, pintadas com cores bonitas e totalmente enfeitadas. Ele se maravilhava com tantas luzes e músicas belas que vinham de dentro das casas. Escutava também gargalhadas e via pelas janelas abraços e sorrisos que invejava.
Caminhou até chegar a um banco de cor branca numa pequena praça rodeada por casas. Esperou pacientemente algum sinal de um homem velho e gordo com roupa vermelha e um saco nas costas. Esperou por muito tempo, tanto que não ouvia mais som algum.
E então, como um flash, lembrou-se do que ouviu sorrateiramente um garoto mais velho dizer certa vez:

— Papai Noel não existe, só as crianças acreditam nisso!

Nunca antes havia pensado nessa afirmação como algo possível de ser verdade, mas aquela ausência o fez repensar. Notou que assim tudo fazia sentido. Por um segundo sua mente se iluminou: ele parecia entender e doía , tudo se encaixava: os brinquedos, as luzes, as crianças ricas e a ausência de tudo isso na sua vila de pessoas tão pobres.
Sentiu algo gélido invadir-lhe começando na região do coração e indo para as extremidades. Lentamente deitou-se encolhido no banco em que estava, com cuidado, como se fosse quebrar-se. Seus olhos de criança-assustada estavam úmidos, as lágrimas começaram a descer e encontraram-se com o chão. Se virou para olhar as estrelas, uma das poucas coisas que todos podiam ter, e um cansaço profundo apareceu. Esperava que houvesse alguma esperança, mas garotos como ele não podiam se dar ao luxo de tê-la, ele pensou. A realidade batia à sua porta de uma forma grosseira e inexorável. Abraçou os braços, encolheu as pernas e, sussurrando coisas como a vida é tão triste”, ele pegou no sono.

9 de janeiro de 2012

45.

Contos de fadas camuflados em supostos sábios conselhos.

Com um impulso se jogou sobre a cama, braços cruzados atrás da cabeça, olhos no teto. Ela costumava ouvir que para tudo havia a hora certa de acontecer, então fechou os olhos e se deixou acreditar.
Não, não culpou ninguém, ela queria crer... Para poder respirar sem todo aquele medo do que estaria pela frente.
E usou por muito tempo aquela linda e brilhante desculpa de que se o que ela desejava não havia acontececido era porque a hora ainda não havia chegado, mas chegaria, sempre chega, não é mesmo? ela pensava alto.
Até que em um belo dia acordou e percebeu que nada viria e que, por mais otimista que tentasse ser, era dolorosamente tarde demais para buscar.

5 de janeiro de 2012

44.

Se eu morresse amanhã.

Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!

Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!

Que sol! que céu azul! que dove n'alva
Acorda a natureza mais loucã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!

Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!

Álvares de Azevedo.