7 de dezembro de 2012

66.

Essa é Ester.

Com sete anos de idade quis ser astronauta, não deu. Quis correr por campos de flores, não encontrou -- também não procurou muito. Quis cantar para milhares de pessoas, não sabia, não podia -- desistiu. Durante toda sua infância brincou sozinha com suas bonecas, cresceu e se acostumou a viver também sozinha, com seus personagens, suas histórias, suas divagações. Aos dez encontrou um palhaço encostado na lona no fundo do circo que disse a ela que a vida não tinha graça. Aos catorze pensou ter sentido o amor e chorou patética crendo piamente que aquilo nunca iria passar -- passou. Aos dezesseis sonhava em subir até o topo de uma torre telefônica que havia na sua cidade -- foi embora da cidade, nunca subiu tão alto, mas ainda sonhava. Aos dezessete rodopiava pela casa ouvindo músicas e sonhando em ser livre como um pássaro. Nunca teve um sonho [que se sonha dormindo] que fizesse sentido. Passou cinco anos sem amar, embora ninguém tivesse quebrado o seu coração em pedaços. Aos vinte possuía dezenas de enormes sonhos no peito e nas mãos quase nada do que havia esperado para o futuro. Mas isso ninguém viu.

E nada disso importa agora.

Aos vinte e um ela caminhava à noite pela rua pensando em jogar tudo para o alto e ir viver a vida como se cada dia fosse o último, quando foi surpreendida por um caminhão que não deixou intacta quase nenhuma parte de sua casca chamada Ester -- que já não parecia ela, mas que nunca de fato o foi --. Ester já não existia, ela costumava ser um conjunto de órgãos e pensamentos e principalmente sonhos. Enquanto a multidão toda se aproximava para ver o ocorrido, algo sem cor subia e explodia no céu azul escuro daquela noite sem estrelas, eram seus sonhos -- mas isso ninguém viu.

19 de outubro de 2012

65.


A caneta estourou  estragando o jeans da garota e inundando-o de rosa escuro. Dentro da mancha se via até algumas letras em destaque  não se sabe como surgiram no furor do acaso – quase irreconhecíveis, mas que, ainda que letras fossem, não pareciam formar palavra alguma. E foram esquecidas.
Respirou fundo  havia partículas de coragem no ar desse dia  e estourou, sim, pois há muito estava ali, no bolso da frente: inútil, esquecida, assistindo outras canetas saírem e voltarem revigoradas, úteis! "Trabalho feito", dizia uma sorridente. "Histórias para contar", regozijava a outra reluzente.
Mas um dia  Há! Um dia... "Chega!" gritou a caneta. E estourou  pôs um basta! Já não mais suportava.
E então foi finalmente requisitada, era ela a caneta pela qual a garota procurava!
Saindo do bolso escuro reconheceu o cenário que antes tanto visitava e foi sendo pela garota movida para um canto da sala.
Sorriu de alegria, revigorada, gritou para o mundo sobre o quanto esperara!
Mas foi solta e num instante, subitamente, no lixeiro ela estava.
***
Há quem diga que havia um F na mancha, um I abstrato e um M meio desengonçado.
Pobre caneta e seu fim irremediável.
***
Mas olhe só
a caneta que sou!
Eu preciso sair também,
vou estourar, você sabe...
A mente, o coração, a alma.
E derramar sobre o sofá da sala
toda tristeza acumulada,
todos os medos crescentes
e as lágrimas poupadas.

Mas espero,
como nunca esperei algo,
que uma palavra bem bonita seja formada.
E se não for,
ainda assim, tudo bem,
terei um instante inteiro
para gritar ao mundo sobre o quanto esperei.

14 de setembro de 2012

64.


Os dias seguem abominavelmente patéticos, tão pequenos e feios que até o sonho se moldou assim. Por esse motivo, à noite, entregue ao sono, não mais possuo o bom sonho como instrumento de fuga da realidade que carrego nos ombros.
O preto-e-branco foi tomando conta do cenário, que já não era provido de muita cor, e então, numa tarde dessas, num vazio desses    me alcançou.

Estou quase sem cor por inteiro, a região onde nascem os devaneios persiste, assim também o coração e os olhos. Mas todo o resto já foi tomado e a força já não existe. Nem mesmo as lágrimas resistiram  nenhuma expressão da dor, apenas a dor, seca e fria.

E na ânsia de não partir desse mundo tão belo    quem escreve nunca está sozinho, ouvi dizer    tento-me encher o quanto posso de saberes. Mas quanto mais sei menos sei e acabo concluindo que não há verdade concreta alguma pra se saber, apenas milhares de supostas verdades e milhões de possibilidades que devem mesmo ser a origem da insanidade do homem.

Houve uma época    não tão longe quanto a palavra "época" faz soar    em que escrevia boas poesias com uma constância considerável. Era acolhedor aquele sentimento de ter transformado o incomodo em pérola, mas então pensei: Talvez chegue um tempo em que eu seque.

E sequei.
***
A ultima gota de tinta colorida sumiu.
Era todo preto e branco o quadro, já não mais se via colorido algum. Assim na alma, assim nos devaneios, assim nos olhos, no coração, assim nos que tanto lutaram e lutando desfaleceram.
O desenho do poeta no quadro sumiu, e reapareceu em um outro patético, feio e seco. Chamavam o lugar que compunha o cenário de "vida comum", "realidade pura", "comodismo". Mas suponho, amigo, e creio que irás concordar comigo: aquele era seu inferno, para o qual infelizmente estava vivo.

9 de setembro de 2012

Sobre as coisas que não são.

Sabe aquele momento quando a chuva passa e a água acumulada nos telhados das casas caem? É como se continuasse chovendo, mas não chove.
Sabe aquele momento quando estamos rindo feito idiotas de coisas idiotas? É como se fossemos felizes, mas não somos.
Minha vida é feita de pós-chuvas, de gotas que caem dos telhados das casas e não das nuvens, de sentimentos que parecem, mas não são.

4 de agosto de 2012

63.

Iconoclastas.

O vento nas palmeiras — posso até ouvir. Forte, inexorável, falante.
O grilo emite o seu sinal: constante, incansavelmente. Nenhuma banda fora antes tão resistente.
Aqui dentro — e falo sempre sobre o aqui-dentro — estava escuro e com a lanterna-azul acesa, até as pessoas aparecerem com o desespero dos iconoclastas e destruírem todas as imagens de beleza que tentava manter na quietude e paz do meu silêncio, da minha escuridão.
Mas o vento continua — balança algo no telhado — e não há nada que o impeça, nem ao grilo, nem aos carros periódicos na rua. Porém a mim a vida opõe-se, sou no íntimo contra as leis do que é real. Este, imutável e  rude, tira-me as luzes apagadas, a ausência de palavras, de movimentos, ações, barulhos e presenças.
E depois de um dia longo e cansativo sendo, lá fora, sob a influencia do patético, tudo o que queria evitar ser hoje (tudo o que evito ser todos os dias) queria poder abrir a porta e ser como uma folha de palmeira livre, levada pelo vento para bem longe daqui. Onde os grilos ainda cantem, o vento ainda fale, os carros ainda passem, mas onde eu possa continuar só e poética e acreditar com toda a fé do mundo que existe um lugar  —  e é aquele — onde eu posso ser o que sou, sem interrupções, sem iconoclastia.

24 de julho de 2012

62.

Debussy, Clair de lune by Claude Debussy on Grooveshark
Sublimação.

O corpo desajeitado, a cabeça apoiada na mão e os olhos entreabertos era seu sinal de desistência.
A mente estava cansada de trabalhar pra fazer tudo parecer menos ridículo e rude, já era claro demais pra fingir-se não ver, já era tarde demais pra fingir-se não crer no que era real e abraçar um sonho, um devaneio, uma linda mentira em veludo.
E nenhuma canção era forte o bastante pra quebrar o gosto do real-imutável e repugnante, nenhuma palavra, nenhuma lanterna na escuridão, nenhum silêncio.
E doía ter que aceitar que talvez a vida seria sempre aquilo, mais nada. Aquele barulho indesejado, aquelas palavras pesadas, aquela multidão indo pra lugar nenhum pensando estar indo para algum lugar.
***
 Dizem que eu deveria ter nascido em uma estrela.
 E o que você faria morando em uma estrela? É um lugar pequeno, só caberia você.
 Eu dançaria ao som de um prelúdio, feito a bailarina da caixinha de música.
 Chopin?
 Debussy.
 E a vida seria apenas isso?
 Ahh... E só isso sendo seria tão mais do que o que tenho nas mãos.

10 de julho de 2012

61.

Circular e constante

E aqui estamos, depois de tantas palavras, de tanto sentimento. O que fez desde a ultima vez?
Olhe ao seu redor. Isso é novo?
Olho ao meu redor e nada é novo.
Arrumei todo o quarto e mudei os moveis de posição, só pra parecer que saí do lugar, que as coisas vão mudar. Não vão.
Achei um calendário propaganda no quarto de visitas, coloquei aqui do lado só pra ter aquela impressão de que espero por um dia marcado em que algo magnifico acontecerá. Não irá.
A mesma velha chuva e o mesmo velho sentimento de estar jogando fora a vida.
Como eu queria acordar amanhã e ter toda a coragem do mundo pra fazer do meu dia algo fantástico e memorável, mas tudo o que tenho cabe no espaço de mim e se chama medo.
Esse é o meu quarto que abrigando tantos pensamentos não abriga quase nenhuma atitude. Quero mudar e tudo o que consigo fazer é trocar os móveis de lugar. E continuar no mesmo lugar.
— Por onde andou?
— Em círculos. E você?

9 de julho de 2012

Não tenho escrito nada de bom ultimamente.
Talvez seja temporário.
Talvez não.

1 de junho de 2012

XX.

Anti-vocábulo.

Dragões, castelos, flores no cabelo, vestido.
Sorriso, braços abertos, pássaros, flores, rodopio.
Vento no rosto, olhos fechados.
Beleza.
Um sentir sem tamanho.
Sonho.

Olhos abertos: realidade.
Pessoas, casas, nada no cabelo, vestido amassado.
Risada exagerada, mãos cruzadas, carros, flores na floricultura, passos largos.
Anti-beleza. Amargura.
Um fingir-estar-bem sem tamanho.
E a hora de dormir que não chega.
E a hora de sonhar que não vem.

Tudo bem... Apenas feche os olhos.
Existe um mundo novo que começa no que não se pode ver
e termina no que se pode imaginar, e assim sendo: é infinito.

3 de maio de 2012

60.

Nós queremos mudar o mundo. 

 Eu queria ser sempre jovem, para não perder a força, não me entregar à resignação de somente existir todos os dias; para não perder nunca a vontade de me equilibrar sobre o meio fio, de tomar um banho de chuva e ver desenhos nas nuvens.
Eu quero sonhar bem alto, perceber a falta de sentido da vida, chorar, me consolar e cantar. Não quero crescer e achar que a vida é simples e prática, não quero ser calmaria, "cadeira de balanço".
Precisamos viver! Precisamos fazer a revolução! Ainda que seja apenas em nossos corações.
Desejo ser sempre jovem e não parar de enxergar o mundo desse modo.
E que venham as rugas no rosto,
só não deixe que elas alcancem a alma.

29 de abril de 2012

59.

A realidade é amarga,
 mas é a única que mata a sede. 

 Desculpe, mas não consigo falar de amor. Não consigo dedicar linhas e linhas a esse sentimento porque sinto que algo bem maior está acontecendo a todo o tempo e poucos notam... A vida está acontecendo, você percebe? Eu não quero vir aqui e contar uma história fictícia e bonita de um amor que talvez nem exista porque há algo maior e gritante que poucos escutam, que poucos veem.
É a vida acontecendo, você percebe? E eu não consigo passar um dia sequer sem perguntar sobre o sentido de tudo isso, sobre os motivos de tantas coisas, sobre as respostas de tantos por que's.
Procuro o sentido que não existe no mundo que é real e incontestável; tantas guerras, tanta fome, tanta injustiça, tanto sofrimento; sim, o amor é a saída, o amor é a solução, mas ignorar todo o resto e pensar que a vida é só viver um romance... Não, isso não. Precisamos sonhar com os pés no chão.
Nas noites difíceis desejei morar em um sonho, mas percebi que a realidade me seguiria aonde fosse, pois pertenço a ela, dela vim, nela morrerei.

Não tão firme, não tão forte, 
mas aqui vou eu, 
pois como diz o poeta: 
"E é isso a que se chama um vivente: 
um pouco de carne oferecida à agressão do real."

24 de abril de 2012

58.

Estação dos sonhos.

 Olhem o que está passando! É o trem da vida!  Disse um homem apressado, com paletó e chapéu na mão.
A garota, em pé, apenas o acompanhou com os olhos, depois voltou o olhar para frente, estática, com sua mala erguida - na altura dos joelhos - no encontro das mãos.
Faz anos que ela deixa que esse trem, todas as manhãs, passe e faça com que ela tão somente exista, ali, parada nessa estação onde milhares de pessoas todos os dias passam: algumas voltam, outras nunca mais são vistas.
Alguns chamariam aquilo de vida, mas vida é o trem, vida é estar em movimento, vida é não saber o destino, mas saber que se está indo em busca dele!
E depois descobrir que viver consistia, sim, na viagem e não na chegada e que no destino não existe mais nada se não o precipício onde os trilhos acabam.

30 de março de 2012

57.

Conhecimento.

Enquanto apresentava sua imensa biblioteca para o neto de sete anos, ele disse:
— Você precisa ler muito. Graças aos livros hoje eu sei quem foi Mozart, Chaplin, Chopin, Drummond, Gandhi e muitos outros seres memoráveis!
O garoto olhou confuso e perguntou:
— E nós, vô?
...
Quem somos nós?
(BASEADO EM UMA TIRINHA)

27 de março de 2012

56.

Vestido de renda.

O fim da linha é apenas um penhasco onde os trilhos não podem passar ou existe um paraíso?
Esse é um trem feio, velho e sujo. Nada clássico se quer saber.
Estou em um assento pouco confortável; não existe um herói ou um cowboy e eu não sou uma garota com vestido de renda, chapéu e lenço.
Essa é a vida    não um filme, não um sonho  é a vida, ouviu falar? Melhor seria se não a conhecesse, mas agora o jeito é seguir em frente.
Aqui dentro tudo é feio, e pular do vagão significa o fim: onde nada terá a chance de melhorar, embora ficar talvez tenha o mesmo resultado.
Está escutando esse som do atrito das rodas com o ferro no chão? Todos os dias ouço o mesmo som. Nunca pára esse trem para coisa alguma nova entrar; sempre a mesma paisagem seca, sempre as mesmas palavras grossas.
Sempre esse mesmo balanço, essa ânsia no estômago, essas lágrimas e essa falta de lenço, chapéu e vestido de renda; essa falta de herói, mocinha e história de amor e história de vida, essa falta de uma história interessante qualquer que se possa contar em uma bela noite e ser ouvida com curiosidade.
Olhando a vida de longe consigo ver com moldura comum — em parede branca — um quadro simples na exposição da existência; nele a imagem de uma menina sentada no aposento de um trem olhando pela janela a vida passar.
Ah... Se ela ao menos tivesse coragem.

1 de março de 2012

55.

Fim do dia.

Atravesso mais um dia cheio, sem perder o vazio de sempre, é claro. Estou indo pra casa.
Veículo  vento  frio.
Engraçado, mas sinto como se algo fosse acontecer bem agora.
O céu está azul, ou violeta, não sei. Está anoitecendo.
Vejo rostos passarem rápido  casas, ruas, vidas. Engraçado, mas sinto como se algo fosse acontecer bem agora. Como se um meteoro fosse cair logo a frente, como se o céu fosse se abrir e cavaleiros descerem dele, como se em um piscar de olhos eu fosse sumir, como se nunca tivesse feito parte desse cenário, ou até mesmo como se o cenário fosse mudar de repente, como se ele sempre estivesse lá.
Calor  cansaço  desejos. Engraçado, mas sinto como se algo fosse acontecer bem agora.
Mas nada acontece, você sabe. E assim são as minhas noites, manhãs e tardes: Um amontoado de horas em que nada vem.
Nada acontece. Nada acontecerá.
As pessoas estão caminhando para algum lugar agora e eu (nesse veículo controlado por um estranho) tento imaginar o que está se passando na mente de cada um ao meu redor:
O homem cantando e ouvindo música no carro cinza. A mulher esperando a hora certa de atravessar a rua. Três pessoas em um carro para apenas duas. O homem na bicicleta. A mãe e o menino.
Cada vida um universo,
cada universo uma dor.
Engraçado, mas sinto como se algo fosse acontecer bem agora. Já disse isso? Que seja.
Mas nada desceu do céu, nenhum meteoro, nenhuma explosão.
É apenas mais um dia — cheio e ao mesmo tempo imensamente vazio  que chega ao fim
para amanhã recomeçar.

24 de fevereiro de 2012

54.

Essa noite. 

Eu não o quero mais. Eu não me quero mais. Eu não quero mais nada.
Sim, hoje é uma daquelas noites. Vocês estão cheios disso, mas não sãos os únicos. Cansei de mim também.
Cansei de sentir sempre as mesmas coisas e perceber que nada muda, que nada faço, que nada vem. E nada busco.
Apenas espero, apenas desejo.
E de tanto querer tudo, essa noite não quero mais nada. Não quero você que não veio, e não me importa mais se virá. Por alguns minutos esqueço dos sonhos, esqueço do futuro que tanto perturba, esqueço da vida que quero ter e da que tenho, e penso: Não quero mais nada. Mais nada.
Porque querer dói demais quando não se pode ter.
Me falta coragem pra ser feliz. Vontade tenho aos montes (suspirou) me falta é coragem, meu bem.
A porta do quarto se fecha e quando deveria dormir, choro.
Quero tudo, mas essa noite, só por essa noite, não quero mais nada.

53.

AMOR E MEDO.

Quando eu te vejo e me desvio cauto
Da luz de fogo que te cerca, ó bela,
Contigo dizes, suspirando amores:
— "Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!"

Como te enganas! meu amor, é chama
Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo é que te adoro louco...
És bela — eu moço; tens amor, eu — medo...

Casimiro de Abreu.

21 de fevereiro de 2012

52.

Herança.

Não, meu bem, não chore. Olhe pra mim, me escute:
Vai ser difícil sem mim, eu sei, mas acho que nesse tempo em que passamos juntos você aprendeu comigo e minhas manias esquisitas que a realidade não precisa ser sempre realidade e a fantasia muito menos.
Acorde amanhã e lembre-se de mim (de nós) como um sonho bom que você teve essa madrugada. E depois levante, olhe a barba no espelho como você faz todas as manhãs, tome um banho, ponha a sua roupa favorita e vá viver, depressa. O que você tem nas mãos - e que está se esvaindo da minha agora - é único, não existe nada antes ou depois disso, então aproveite o quanto puder. A vida é o que você faz dela. Faça algo bom da vida, querido.
O segredo da imortalidade é não morrer nos corações, nas mentes e nas palavras de cada geração, eu não consegui ser imortal, mas você pode ser: se tentar bastante. Mesmo quando a fé e a esperança pareçam ter sumido, acredite, nada é mais difícil de ir do que a esperança, ela sempre está lá, procure bem. Seja forte, embora isso não seja possível todos os dias, todas as horas, mas tente. Você não vai conseguir nada se não praticar essa coisa de nome tão pequeno, mas de uma dificuldade considerável: Ten-tar.
Você pode escolher ser imortal, mas não esqueça do mais importante (e sim, clichê): Ser feliz.
Pausou.
Agora preciso ir ser nada em lugar algum, e você precisa ser algo bem aqui - disse estendendo uma mão delgada para acariciar o rosto dele -, bem agora.
Então seja.
E fechou os olhos para a vida abrindo os olhos para o não-ser. E foi, foi ser nada em algum cantinho de lugar algum; sem dores e agora, só agora, sem esperança.

14 de fevereiro de 2012

51.

Pensamentos soltos.

Está chovendo lá fora, na sala um grupo conversa, na rua os carros passam e as pessoas com guarda-chuvas caminham de volta pra casa. Aqui dentro do quarto as luzes estão apagadas, a lanterna ligada. A caneta, o papel e o sentimento.
A chuva está ficando mais fraca, a luz da lanterna prestes a apagar, e não sei ao certo onde esse texto vai dar. Mas me sinto bela, embora sonolentamente triste.
Essa noite só quero deitar, dormir e esperar que ao menos o sonho seja aconchegante.
Um clique e a lanterna se apaga, o caderno é fechado, a caneta é guardada e a porta se fecha.
Vamos pra vida, enquanto a hora de dormir e sonhar não vêm.
Vamos sorrir sorrisos falsos lá fora, vamos chorar lágrimas verdadeiras no travesseiro, vamos fechar os olhos e pedir com fé que algo venha, subitamente, em uma noite chuvosa, enquanto os carros passam e as pessoas com guarda-chuvas caminham de volta pra casa.

4 de fevereiro de 2012

50.

No Caminho, com Maiakóvski.
Eduardo Alves da Costa.
Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

1 de fevereiro de 2012

49.

Dentro do quarto. Dentro de mim.

No começo uma luz fraca e titubeante, depois de um tempo não havia mais nada, se apagou.
Não podia mais, no silêncio da casa, desligar as luzes do quarto e ligando sua lanterna passar momentos tristonhos e aconchegantes dizendo frases sobre o que sentia, sobre o que temia, sobre o que tinha e não tinha. Mas agora não podia mais contar com a pequena luz - no fim do túnel? - que não fazia da escuridão inteira.
Outra noite se virou enquanto tentava dormir e notou que ela estava ligada, sem um notório porquê, lá estava a luz. Levantou e apagou, voltou a dormir.
Hoje a casa está quieta, as janelas fechadas e não há luz, a escuridão é inteira aqui dentro do quarto, e me pergunto então como as coisas estão aqui dentro de mim.

27 de janeiro de 2012

48.

A suposta existência.

Andrade, Carlos Drummond de.

Como é o lugar quando ninguém passa por ele? Existem as coisas sem ser vistas?
O interior do apartamento desabitado, a pinça esquecida na gaveta, os eucaliptos à noite no caminho três vezes deserto, a formiga sob a terra no domingo, os mortos, um minuto depois de sepultados, nós, sozinhos no quarto sem espelho?
Que fazem, que são as coisas não testadas como coisas, minerais não descobertos - e algum dia o serão? Estrela não pensada, palavra rascunhada no papel que nunca ninguém leu? Existe, existe o mundo apenas pelo olhar que o cria e lhe confere espacialidade? Concretitude das coisas: falácia de olho enganador, ouvido falso, mão que brinca de pegar o não e pegando-o concede-lhe a ilusão de forma e, ilusão maior, a de sentido?
Eis se delineia espantosa batalha entre o ser inventado e o mundo inventor. Sou ficção rebelada contra a mente universal e tento construir-me de novo a cada instante, a cada cólica, na faina de traçar meu início só meu e distender um arco de vontade para cobrir todo o depósito de circunstantes coisas soberanas.
A guerra sem mercê, indefinida prossegue, feita de negação, armas de dúvida, táticas a se voltarem contra mim, teima interrogante de saber se existe o inimigo, se existimos ou somos todos uma hipótese de luta ao sol do dia curto em que lutamos.

21 de janeiro de 2012

47.


Nós podemos explicar o azul-pálido desse pequeno mundo que conhecemos muito bem. Se um cientista alienígena, recém-chegado às imediações de nosso Sistema Solar, poderia fidedignamente inferir oceanos, nuvens e uma atmosfera espessa, já não é tão certo. Netuno, por exemplo, é azul, mas por razões inteiramente diferentes. Desse ponto distante de observação, a Terra talvez não apresentasse nenhum interesse especial. Para nós, no entanto, ela é diferente. Olhem de novo para o ponto. É ali. É a nossa casa. Somos nós. Nesse ponto, todos aqueles que amamos, que conhecemos, de quem já ouvimos falar, todos os seres humanos que já existiram, vivem ou viveram as suas vidas. Toda a nossa mistura de alegria e sofrimento, todas as inúmeras religiões, ideologias e doutrinas econômicas, todos os caçadores e saqueadores, heróis e covardes, criadores e destruidores de civilizações, reis e camponeses, jovens casais apaixonados, pais e mães, todas as crianças, todos os inventores e exploradores, professores de moral, políticos corruptos, superastros , líderes supremos , todos os santos e pecadores da história de nossa espécie, ali - num grão de poeira suspenso num raio de sol. A Terra é um palco muito pequeno em uma imensa arena cósmica. Pensem nos rios de sangue derramados por todos os generais e imperadores para que, na glória do triunfo, pudessem ser os senhores momentâneos de uma fração desse ponto. Pensem nas crueldades infinitas cometidas pelos habitantes de um canto desse pixel contra os habitantes mal distinguíveis de algum outro canto, em seus freqüentes conflitos, em sua ânsia de recíproca destruição, em seus ódios ardentes. Nossas atitudes, nossa pretensa importância de que temos uma posição privilegiada no Universo, tudo isso é posto em dúvida por esse ponto de luz pálida. O nosso planeta é um pontinho solitário na grande escuridão cósmica circundante. Em nossa obscuridade, no meio de toda essa imensidão, não há nenhum indício de que, de algum outro mundo, virá socorro que nos salve de nós mesmos.
Carl Sagan.

46.

NATAL

Fechou com cautela a porta disforme de madeira que mal trazia segurança ao casebre. Fitando o nada entre si e o chão aos seus pés, com as mãos no bolso do short sujo e velho, começou a caminhar sob o céu estrelado daquela noite de natal.
Fazia frio e suas roupas não o ajudavam a vencê-lo, mas suportava com pesar. O garoto tinha sete anos de idade, roupas gastas e sandálias maiores que os pés.
Há tempos havia ouvido falar que as crianças ricas ganhavam ótimos brinquedos de natal, então decidiu passar a noite no bairro mais rico que conhecia, esperando que o Papai Noel aparecesse, pois planejava saber o porquê dos garotos da sua vila não receberem presentes.
Pelo caminho pensava alto e conversava consigo mesmo: Se o Papai Noel não puder mandar presentes para os garotos da minha vila vou pedir ao menos um para o meu irmão Caio, ele quer muito uma bola de futebol de verdade. Preciso explicar ao Papai Noel que não é nossa culpa não termos biscoitos e leite, nem chaminé! Ele vai entender...

Chegou ao seu destino: uma rua com casas grandes, pintadas com cores bonitas e totalmente enfeitadas. Ele se maravilhava com tantas luzes e músicas belas que vinham de dentro das casas. Escutava também gargalhadas e via pelas janelas abraços e sorrisos que invejava.
Caminhou até chegar a um banco de cor branca numa pequena praça rodeada por casas. Esperou pacientemente algum sinal de um homem velho e gordo com roupa vermelha e um saco nas costas. Esperou por muito tempo, tanto que não ouvia mais som algum.
E então, como um flash, lembrou-se do que ouviu sorrateiramente um garoto mais velho dizer certa vez:

— Papai Noel não existe, só as crianças acreditam nisso!

Nunca antes havia pensado nessa afirmação como algo possível de ser verdade, mas aquela ausência o fez repensar. Notou que assim tudo fazia sentido. Por um segundo sua mente se iluminou: ele parecia entender e doía , tudo se encaixava: os brinquedos, as luzes, as crianças ricas e a ausência de tudo isso na sua vila de pessoas tão pobres.
Sentiu algo gélido invadir-lhe começando na região do coração e indo para as extremidades. Lentamente deitou-se encolhido no banco em que estava, com cuidado, como se fosse quebrar-se. Seus olhos de criança-assustada estavam úmidos, as lágrimas começaram a descer e encontraram-se com o chão. Se virou para olhar as estrelas, uma das poucas coisas que todos podiam ter, e um cansaço profundo apareceu. Esperava que houvesse alguma esperança, mas garotos como ele não podiam se dar ao luxo de tê-la, ele pensou. A realidade batia à sua porta de uma forma grosseira e inexorável. Abraçou os braços, encolheu as pernas e, sussurrando coisas como a vida é tão triste”, ele pegou no sono.

9 de janeiro de 2012

45.

Contos de fadas camuflados em supostos sábios conselhos.

Com um impulso se jogou sobre a cama, braços cruzados atrás da cabeça, olhos no teto. Ela costumava ouvir que para tudo havia a hora certa de acontecer, então fechou os olhos e se deixou acreditar.
Não, não culpou ninguém, ela queria crer... Para poder respirar sem todo aquele medo do que estaria pela frente.
E usou por muito tempo aquela linda e brilhante desculpa de que se o que ela desejava não havia acontececido era porque a hora ainda não havia chegado, mas chegaria, sempre chega, não é mesmo? ela pensava alto.
Até que em um belo dia acordou e percebeu que nada viria e que, por mais otimista que tentasse ser, era dolorosamente tarde demais para buscar.

5 de janeiro de 2012

44.

Se eu morresse amanhã.

Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!

Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!

Que sol! que céu azul! que dove n'alva
Acorda a natureza mais loucã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!

Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!

Álvares de Azevedo.